top of page

Pernas fortes

Faço parte de uma família de mulheres ativas, fortes e atuantes. Muitas delas alcançaram facilmente os 80 anos e outras comemoraram um século de vida. Mulheres de múltiplos compromissos, um rol de histórias para contar, um batom cuidadosamente aplicado, uma vontade incrível pelo novo e uma encantadora leveza. Elas passaram pela vida e não deixaram que os contratempos justificassem que a vida simplesmente passasse diante delas. Carregam marcas do tempo: traços na pele em riscos e rabiscos. Branco intenso nos ralos cabelos. Escutam menos do que antes. Perdem progressivamente a visão e andam a passos lentos arrastando os pés.


Estes dias, num almoço de domingo, escutava atentamente os relatos uma tia avó. Dentre a rotina de afazeres, ela contava que escolhe o baile no salão.


__ Tem gente de todos os jeitos, uns não enxergam mais, outros não têm memórias lúcidas, alguns quase nem andam.Tem dias que eu mesma fico com preguiça de ir, mas isso dura pouco, porque aprendi que se não for hoje, também não vou amanhã e, se deixar de dançar, não consigo tomar conta de mim.


Ela tem 87 anos e mora sozinha. Em breves palavras, assume a rotina de resolver coisas de banco, ir ao supermercado, arrumar a casa e dar aulas de piano.


__ Danço para ter as pernas fortes e poder cuidar de mim, disse ela em alto tom.


Eu achei aquilo incrível. Pernas fortes para cuidar de si mesma. Cuidar num sentido pleno, autônomo, inventivo.Senti-me tocada pela forma de falar de si, dos anos de viúves e da independência na maturidade. Olhei aquele brinco delicado na orelha, a cabelo bem cuidado, as veias pulsantes nas mãos, a alegria de fazer a vida acontecer. Estava diante de uma mulher de corpo ativo, tal qual defende Gallo(2006):


corpo ativo é uma espécie de cuidado consigo mesmo, uma ação sobre si mesmo que nos faça a um só tempo mais saudáveis e mais conscientes de nossas possibilidades, de nossos entornos, de nossos limites. Corpo ativo como uma forma de ser-no-mundo, como exercício de uma vida autônoma, crítica, criativa (p. 28).


Contrastava a lentidão dos jovens ao redor. Um sedentarismo expresso e um autocuidado fragilizado. Aquela senhora impulsionou-me a querer ter pernas fortes, a querer ser e estar ativa. Como salienta Gallo (2006), o conceito de corpo ativo implica:


uma atitude ética para consigo mesmo e para com os outros e o mundo: a escolha racional e consciente de uma forma de gerir sua própria vida, que implica o cuidado consigo mesmo e o cuidado com os outros; uma forma de fazer-se melhor a cada dia, fazendo com isso que o mundo também seja um lugar melhor para se viver” (p.28).


Quer cuidar de si mesmo? Acorde, o dia nasceu. Saia da cama, levante-se e vamos dançar.


Referência


GALLO, Silvio. Corpo ativo e filosofia. In: MOREIRA, Wagner Wey (org). Século XXI: a era do corpo ativo. Campinas, SP: Papirus, 2006. (p.09-30).


Tatiana Passos Zylberberg

8 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page